EM TERRA DE SINHAZINHAS E SENHORES DE ENGENHO, A RESISTÊNCIA DO HERÓI NEGRO
Recentemente, enquanto desenvolvia uma pesquisa sobre a recepção de desenhos animados entre crianças, jovens e idosos, um entrevistado chamou-me a atenção. Tratava-se de um garoto de doze anos. Quando perguntei a respeito de sua série preferida, ele respondeu prontamente que apreciava (e muito!) o desenho Super Choque. A justificativa? Por se tratar do único herói negro que conhecia.
Fiquei surpreso com aquela resposta.
Movido por uma certa inquietação desencadeada pela fala do garoto, comecei a pensar sobre a representatividade de negros no universo do cinema de animação. Como pesquisador, e na busca por fontes que resgatassem personagens negras ou pardas, encontrava, em minhas investigações, um quadro bastante previsível. Com o advento da Disney no início do século XX - e mesmo com as produções paralelas protagonizadas por Popeye, Betty Boop e o Gato Félix - raras eram as referências a perfis de protagonistas que destoassem de modelos já consagrados na própria literatura: heróis brancos, de classe média ou abastada,que se embrenhavam em grandes feitos em prol da coletividade. Era a descrição para os heróis hegemônicos da Marvel e da DC Comics: Capitão América, Homem Aranha, Batman e, sobretudo, Superman – o famigerado homem de aço.
Possivelmente, entre os poucos heróis que se moviam e transitavam na contramão desse paradigma, ecoava, com sucesso, o casal Homem Borracha e Minie-Minie, de 1978. Criados nos estúdios da Filmation, as duas personagens chamavam a atenção por três atributos: eram negras, dispensavam uniformes nacionalistas (como o Superman) e não recorreriam a nenhuma identidade secreta. Por outro lado, a narrativa não aderia a nenhum discurso militante a respeito da cor da pele. A proposta da série estava preocupada muito mais em sublinhar as aventuras, os feitos, as peripécias de dois heróis e não em acentuar suas diferenças em relação a protagonistas brancos. Esta foi, contudo, uma exceção à regra que imperava naquele contexto.
Os capítulos que vislumbramos depois, ao longo da história da animação, pareciam reservar ainda à população negra a posição secundária nas histórias contadas: encontravam-se lá Panthro (de Thundercats), Doc (de Galaxy Rangers), Diana (Caverna do Dragão) e Winston Zeddmore, o quarto caça-fantasma, e o único que não possuia curso superior; A série Super Amigos, a partir de um discurso de suposta integração, parecia reservar uma cota às demais etnias. Assim, de um lado, refestelavam-se protagonistas brancos de nítido apelo popular (como os nacionalistas Superman e a Mulher Maravilha) e, de outro, figuras como Samurai, El Dorado e Vulcão Negro, que reportavam ao homem oriental, latino e negro, em nítida condição de coadjuvantes.
Títulos interessantes e na linha da lógica do absurdo (nonsense) poderiam ser visualizados tanto em Jackson Five, de 1971, que narrava as aventuras do cantor Michael Jackson ainda menino, em companhia de seus irmãos por lugares fantásticos, como também em Os Super Globetrotters, de 1979, com o cotidiano dos jogadores de basquete na condição de heróis excêntricos, em estreita relação intertextual com a série Os Impossíveis. No caso, as referências ao rei do pop e ao famoso grupo de jogadores – ícones emblemáticos negros – construídos a partir de traços estilizados, sugere destoar das propostas dos demais heróis da década de 1970, com enredos realistas e “mais sérios”. Nesse sentido, a estética norte-americana parecia não inovar muito.
Kiriku (1998), um dos títulos mais emblemáticos do cinema francês, talvez incorpore uma das primeiras manifestações de uma concepção livre e emancipada de infância e representações negras instauradas em uma produção com traços pós-modernistas. Kiriku, o pequeno guerreiro de uma aldeia no coração das savanas africanas, já se expressava verbalmente no ventre da mãe. Era o garoto quem decidia a hora de nascer e revelava-se cheio de autonomia para a escolha do próprio nome. Ainda bebê, tomava sozinho seu primeiro banho, dispensando o amparo materno. Mesmo ignorado pelos adultos experientes e pelas demais crianças do grupo, Kiriku demonstrava coragem para enfrentar a temida feiticeira de Karabá. O grande diferencial da narrativa estava em contemplar a cultura local da África, lançando mão de personagens negros, seminus e bastante intrépidos. Não há, como em Duck Tales (1987), da Disney, o discurso do homem branco e colonizador (encarnado no Tio Patinhas), sobre o aborígene, abordando-o como selvagem, mas toda a beleza de um universo alternativo às narrativas centradas nos núcleos europeus.
Enfim, chegamos ao Super Choque. O prefixo “super” poderia ligá-lo ao Super-Homem, pioneiro entre os heróis dos quadrinhos e das animações. Contudo, Super Choque se distanciaria por conta do lugar em que ocupava no espaço ficcional: é o jovem negro, representante das causas de sua etnia e da luta contra o preconceito e o discurso de intolerância. Em seu visual (traços faciais, cabelos etc) reafirmava-se tal posicionamento. Explorava a periferia, a violência, o bullyng, não a partir da perspectiva da hegemonia branca, mas por meio de um olhar dramático, tocante e inovador jamais contemplado anteriormente. E isso se deve (e muito!) a seus criadores Dwayne McDuffie, Denys Cowan, Michael Davis e Derek Dingle, todos afroamericanos e preocupados com a representatividade das minorias.
Decerto Kiriku e Super Choque ainda constituam referências importantes a respeito da representação de negros e negras no cinema de animação e nas séries animadas. Tornam-se, porém, mais emblemáticos em uma sociedade que se manteve intolerante e que ainda se emprenha em preservar as fronteiras entre a casa grande e a senzala.
De Zumbi a George Floyd
Fernando Luigi
Comentários
Postar um comentário