E A REPRESENTAÇÃO DA POPULAÇÃO LGBT NO CINEMA DE ANIMAÇÃO?

Ao longo da história do desenho animado, observa-se a criação,  consagração e prestígio de heróis tradicionais com perfis homogêneros: brancos, do sexo masculino, heterossexuais e representantes de segmentos abastados. Impondo-se como um fenômeno tanto nas séries matinais quanto no universo cinematográfico, ganhavam destaque por vivenciarem grandes aventuras e desafiarem altivos antagonistas. Revelavam-se, assim, por meio das figuras lendárias de semideuses, cavaleiros medievais, mutantes ou jovens dotados de força extraordinária.

Na contramão dessa tendência, novos perfis de heróis – ainda que em minoria - conquistavam seus respectivos espaços, sobretudo no cenário contemporâneo. De Steven Universe a Kung Fu Panda, protagonizavam histórias que pareciam conceder vez e voz aos segmentos que, até então, encontravam-se na condição de coadjuvantes ou nem tinham espaço nas narrativas: mulheres, refugiados, índios, obesos, negros e gays.

Nessa direção, uma obra que merece atenção especial é o longa-metragem Espanta-Tubarões, de 2004. A narrativa, estruturando-se como fábula contemporânea, tematiza questões como intolerância e preconceito. Os tubarões, temidos senhores dos oceanos, assumiam o posto de personagens marcados pela brutalidade e pela construção de uma suposta virilidade atrelada, quase sempre, à violência. O próprio nome de um deles, Don Lino, remete o leitor, a partir de seu repertório intertextual, ao clássico O poderoso chefão. Assim, Don Lino procurava reafirmar a condição de patriarca das citadas feras, tendo como suporte o medo que propagava entre os demais seres marítimos.

Integrado a tal grupo, mas destoando do perfil de Don Lino, seu filho, o tubarão Lenny, vivia o conflito de identidade entre as cobranças sociais e seus próprios desejos: ele não era carnívoro, almejava ser um golfinho, gostava de se fantasiar e se mostrava contrário às expectativas do pai. Encontrará a aceitação, no entanto, apenas no pequeno e frágil peixe Oscar, amigo que igualmente omitia um grande segredo: conquistara fama e prestígio como os lendários heróis épicos, consagrando-se por abater tubarões. O que, na realidade, era um grande golpe, pois Oscar não passava de um farsante, um covarde, um mentiroso. O peixe Oscar revelava pleno diálogo interdiscursivo com o conto “O matador de gigantes”, dos célebres irmãos Jacob e Wilhelm Grimm.

Leny parecia constituir, com sucesso, uma representação positiva de minorias que não se identificam com a retórica consolidada no sistema cultural. Por não ser carnívoro e tampouco assassino – ou seja, não se ajustava a nenhuma das “caixinhas” impostas por sua espécie- preferia afastar-se de seu grupo. A metáfora construída nos meandros do enredo sugere a crítica a uma sociedade que se ergueu sustentada no signo da heteronormatividade, e que rejeitava todos os grupos que não se enquadravam na retórica apresentada: homossexuais, bissexuais, transexuais, travestis e outros segmentos. A justificativa para tanto (se é que alguma seja plausível!) encontra-se em um discurso religioso punitivo, que nutre, em seus interstícios, resquícios de preconceito, intolerância e, sobretudo, ódio. Os comentários “indignados” perante a recente campanha da Natura ilustram bem isso.

Nas décadas de 1980 e 1990, representações da população LGBT ainda eram encaradas como tabus e alvos de grandes estereótipos. Vaidoso, de Os Smurfs (1980), tinha comportamento efeminado e desejos fúteis, ao passo que o antagonista Ele, de As Meninas Superpoderosas (1998), exibia-se como invejoso, hostil, demoníaco, e sua caracterização, marcada pela androgenia, obedecia, mais uma vez, ao estereótipo. Parecia muito mais fácil investir em um antagonista desse porte, para ser odiado, a um herói ou heroína que erguesse a bandeira para as causas de grupos excluídos. Ainda se pensarmos na década de 1990, o preconceito era tão acentuado que se recorria ao termo “simpatizante” para caracterizar aqueles que não hostilizavam gays e lésbicas. Em outras palavras, a intolerância era tão comum, que o fato de aceitar a diversidade chegava a ser apontado como algo “excêntrico” que merecia uma definição particular (“simpatizantes”).

Quando chegamos aos desenhos animados contemporâneos, fica nítido como revelam novos olhares perante as transformações da sociedade. Destacam-se pela originalidade, pela ousadia e, principalmente, por provocarem a reflexão entre jovens, crianças e adultos. Reflexões acerca de temas variados, que giram em torno de tópicos como a solidão humana, o abandono, a inveja, a morte, o conceito relativo de beleza, os amores não correspondidos etc.  

Entretanto, poucas são as personagens que ainda caracterizam as minorias (ou maiorias?) em sua diversidade. Desenhos que se centram no itinerário do tubarão Lenny em busca de sua identidade e sua autoafirmação ainda se projetam na contramão de uma tradição consolidada, ao longo do século XX, com Batman, Superman e Capitão América. Tradição (e convenção) marcada pelo discurso do homem branco, europeu, colonizador, cristão, classe média, heterossexual e que, infelizmente, ainda nega posições que ainda contrariem esta perspectiva.         

Fernando Luiggi


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